Driblar? Não é bem a palavra. Ele dá uns cortes que fazem o cara procurar a bola nas placas, pedala como quem caça um coelho na cartola, se movimenta em campo como se visse tudo do alto, de helicóptero, ou desenhado numa lousa. Aplica um lençol que é quase uma cortesia, de tão plástico. Tão plástico que o cara nem fica com raiva, sabe? Dá um sorriso humilhado cordial, de “Vocês viram o que eu vi?”, e não seria de estranhar se ajoelhasse pra lustrar a chuteira dele. Mas se o cara é desleal ele rosna com os pregos da sola, nunca vi ninguém dividir com tanto sangue, os dentes rilhados, a coxa triangular quase estourando de dentro pra fora, pintura gritando pra vazar das linhas do desenho. Não é corpulento mas, bom brasileiro, capaz de derrubar zagueiro com puxão de Dener, extrai que nem carrapato mão que lhe gruda na camisa, se preciso arranca cabelo ou lanha rosto no toma-lá do escanteio. A gente quase esquece o chutador que vive ali dentro: trivela, bicuda, folha-seca, acorda-coruja, peito de pé, colocadinha nana-nenê, chapa simples pra empurrar pra dentro, cavadinha. Calcanhar, se necessário – ou absolutamente desnecessário. E carrinho pra não ensejar capricho da torcida, que de tempo em tempo tem que arranjar um boneco de judas, um bode pra expiar. Único do time que eu não vi chorar quando a gente foi campeão da segundona, seis anos depois do clube ter caído, quatro depois da gente ter entrado no time e um depois da gente fazer uma temporada de arrebentar e perder a final com gol anulado e pênalti inexistente, sem falar nos resultados que iam coincidindo em favor do adversário. Único do time que não desceu pra mulherada comprada do vestiário. Puta que o pariu, o que o bicho jogou nesses dois anos não tá no gibi. Fez gol aos 2, aos 45, aos 49. Levou tesoura criminosa pra gente ganhar uma expulsão. Fez gol com drible da vaca, drible do boi, gol de barriga e gol de raiva, afundando o goleiro. Perdeu pênalti e fez questão de bater e converter o seguinte, no mesmo canto. Perdeu o pai e parece que jogou com mais garra, parecia até mais mágoa do que homenagem. Aliás, do pouco que ele fala – sempre daquele jeitão caladão –, disse que o velho nunca apoiou: última coisa que eu queria era te ver correndo atrás de uma bola no meio de um monte de marmanjo. Antipático, bastante. Parece que comigo ainda um pouco mais – o pai. Ele, de sorriso nublado, de não dar intimidade pra ninguém – principalmente depois que uns chimpanzés começaram com brincadeirinha pra cima da gente –, mas gente boa incontestável. Tomamos umas tubaínas depois que voei na cara de um deles. Três jogos na primeira divisão e veio sujeito managear. Coisa de trinta mil. Ele sabia que fechar na hora era bobagem, certeza que vai fechar pelo dobro. Me contou como quem vê chegando o trem do alívio, me revelou um apelido de bicho miúdo e me deu um beijo de mulher – de mulher que tirou das costas as toneladas de um segredo.
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